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Foi com uma certa decepção que reparei que o plástico que envolvia o CD estava ligeiramente rasgado. Isso sempre acontece quando levo um disco no bolso. O que, por sua vez, sempre acontece quando viajo. Por uma tola superstição, quando saio do Brasil, e compro CDs, aqueles que mais quero ouvir eu não despacho na mala. Vão direto comigo, junto ao corpo – como se dessa proximidade dependesse a probabilidade de eles chegarem ao Brasil. Um hábito atávico, talvez, que vem dos tempos em que nossas bagagens eram sumariamente “bolinadas” no trajeto de uma viagem transatlântica ao Brasil. Essa preocupação, com a intensificação das viagens e a melhoria da qualidade do serviço nos aeroportos, tornou-se quase irrelevante – mas eu continuo firme no propósito de deixar os CDs mais “preciosos” bem perto de mim. Com esse do WU LYF não foi diferente.
“Go tell fire to the mountain” era um dos discos mais esperados do ano – pelo simples fato de que a banda por trás dele, WU LYF é um enorme mistério. Um enorme e calculado mistério. Desde o início de 2010, na sempre terrorista imprensa musical inglesa (incluindo aqui os fanzines virtuais), muito barulho se fazia em cima dessa banda de Manchester, Inglaterra, cujo grande charme era justamente não falar nada sobre si mesma. Os shows deles eram sempre “surpresas”, anunciados no boca a boca – e, com isso, claro, criavam uma enorme expectativa. Ninguém sabia muito sobre a banda – e mesmo até hoje, ninguém sabe direito quem são esses caras. No máximo, já dá para entender que o nome deles é uma abreviação de World Unite Lucifer Youth Foundation (“Fundação Juventude Lucifer do Mundo Unido” – numa tradução bem apressada). Que eles são, claro, de Manchester. Que gravaram seu primeiro álbum ao vivo, em uma igreja (Saint Peter). E que o som deles é genial.
Com toda essa informação, você pode entender a excitação com que eu peguei o CD do WU LYF hoje de manhã, recém-tirado do casaco que usava numa rapidisíssima viagem ao exterior esta semana. Abrir o plástico que envolvia “Go tell fire to the mountain” era uma ação com um componente quase erótico que só quem desenvolveu, como eu, um fetiche por esse objeto chamado CD pode entender. Há o estalar do próprio plástico; o primeiro contato com a superfície áspera da capa do disco (que, nesse caso, como em muitos, não vem em uma genérica embalagem de acrílico transparente, mas num elaborado livreto com pinta de “arte”); o sensual cheiro de páginas de um encarte folheadas pela primeira vez; o estalar na hora da primeira retirada do CD do seu encaixe, com leve relutância, como um parto que não contava com uma ligeira complicação; a surpresa de uma imagem inusitada estampada na superfície do disco (em “Go tell fire”, uma curiosa pintura de um homem sorrindo à beira de um lago); o sutil ruído do próprio CD sendo processado no seu aparelho antes de ele oferecer os primeiros acordes da faixa de abertura.
Há anos repito esse processo – mais precisamente desde 1985, quando comprei meu primeiro CD (que, apenas para registro, foi um do Eurythmics, “Be yourself tonight”). Porém, não sei por quantos anos mais vou poder repetir esse ritual. Não sei nem se devo contar esse tempo que me resta em anos – quem sabe em meses. A música digital é uma realidade tão presente, que seria, no mínimo, tacanho apresentá-la aqui como novidade. Porém, amantes da música em sua forma “física” – muitas delas, eu sei, só possíveis de ser absorvidas por um público mais jovem através da Wikipédia (procure por “vinil” ou “fita cassete”) – há anos fingem que ela não está nos seus últimos dias. Mega lojas de CDs já não existem há um bom tempo (com raríssimas exceções) – e os poucos redutos “independentes” raspam o tacho para sobreviver, enquanto fazem uma lenta e relutante transição para o comércio inteiramente virtual. Não só no Brasil, mas também pelas grandes cidades por onde passo com certa frequência (Londres, Paris, Buenos Aires, Nova York), os endereços onde você pode comprar um CD são cada vez mais escassos – e mesmos aqueles estabelecimentos teimosos, cujos donos só continuam abertos por pura paixão, estão cada vez mais vazios (isto é, visitados apenas por mim e um ou dois turistas asiáticos de passagem pela mesma cidade).
O fim é inevitável – mas seguimos cegamente negando esse desfecho, como se uma grande (e improvável) reviravolta faria as pessoas finalmente reconhecerem o valor de um produto físico que contém algo intangível: uma invenção divina chamada “música”. Acuados, tentamos buscar conforto em outros gurus da música que, vez por outra, escrevem exatamente o que queremos ler: que o dia do “juízo final”, quando a última loja de CD finalmente vender seu último exemplar e fechar suas portas para sempre, não vai chegar.
Um dos caras que eu sempre achei que estavam do meu lado nessa utopia musical quixotesca era o ultra influente crítico de música do jornal “The New York Times”, Jon Pareles. Cada texto seu – seja uma entrevista com veteranos do escalão do U2 ou a mais obscura indicação de um relançamento de uma banda “soul” brasileira dos anos 70 – me enchia de esperança. Este, pensava, é um cara que ama os discos (antes em vinil, hoje em CD), como eu: uma relação não apenas criativa, como amorosa. Do toque do próprio objeto aos mistérios que transformavam sulcos – e, mais tarde, números – em perfeitos momentos pop, eles eram (e sempre seriam) a fonte de nosso prazer maior, aquele instante em que ouvimos a in tradução de uma canção que jamais deixaria de fazer parte das nossas vidas. Jon Pareles era meu parceiro. Meu “bróder”. Ele se relacionava com os discos exatamente como quanto eu!
Até que, há algumas semanas, o próprio Pareles publicou um artigo chamado “The cloud that ate my music” (ou, em português, “A nuvem que comeu minha música). E meu mundo caiu.
Escreve Pareles:
“Desde que a música começou a migrar ‘online’ eu desejei que minha coleção de discos evaporasse – simplesmente para ter disponível qualquer canção que eu quisesse, a qualquer momento, sem precisar estocar o resto. Mas eu tenho, digamos, necessidades especiais. Em três décadas como crítico, eu acumulei mais vinis, CDs e arquivos digitais do que eu posso administrar. Uma capinada periódica não segura os 20 ou 30 discos que chegam diariamente na minha caixa postal; as sobrecarregadas estantes do chão ao teto já estão cedendo sob o peso de milhares de CDs e LPs. Qualquer carinho que eu já tive por essas embalagens físicas, não importa quão elegantes ou especiais, já desapareceu há muito tempo; é um arquivo de referência, não uma coleção de arte. E ela cresce e cresce, porque eu nunca sei do que vou precisar: o 45 rotações de uma edição limitada, o CD baixado em casa. Mesmo assim, eu preferia ter tudo numa nuvem do que no meu apartamento”.
Você consegue entender o meu choque? Um dos meus grandes ídolos, uma espécie de guardião dos discos enquanto formato, estava admitindo publicamente que preferia ter todas as suas canções numa “nuvem” do que em casa – em prateleiras que ele podia admirar a qualquer momento que adentrasse a sala. Como assim? Se Jon Pareles foi finalmente vencido pela imaterialidade da música, se ele enfim considerava os aspectos matérias da música (as “elegantes embalagens”) como secundários, se ele não podia mais encarar o volume que uma coleção de música é capaz de acumular, se ele mesmo não considerava esse seu acervo (que certamente é muito maior e mais valioso que o meu) como uma coleção de obras de arte – que esperanças tinha eu para garantir que meus milhares de discos também teriam um futuro?
A “nuvem” da qual Pareles falava, claro, é um termo genérico para a maneira como as pessoas consomem música hoje em dia – e mais ainda no futuro. Engloba não só o novo “produto” da Apple – o iCloud, capaz de armazenar não só todo seu acervo musical como toda sua informação, de toda sua vida, num espaço imaterial, ao mesmo tempo etéreo e disponível a todo tempo –, mas também as inúmeras possibilidades de acessar canções atualmente (sobretudo as incríveis variações de “rádios”, na falta de uma palavra melhor, que disponibilizam infinitas – e personalizadas – seleções musicais para cada tipo de ouvinte, como Rdio, Napster, ouRhapsody. E o que ficou claro é que Pareles estava caminhando para ela. Será que devo eu fazer o mesmo? Você faria? É essa pergunta que me inquieta há alguns dias.
Eu adoro música – como qualquer pessoa que passa os olhos por este espaço pelo menos um par de vezes já percebeu. Mas tudo indica que eu estou diante de um momento crucial em que eu tenho que estabelecer talvez uma nova relação com ela. Aquelas longas tardes, perdido em lojas com prateleiras recheadas de capas misteriosas, intercaladas com estações de escuta que não te ofereciam alguns segundos de poucas faixas já são definitivamente coisas do passado. Se eu quiser ouvir música agora, eu vou primeiro ao computador – e aí sim eu decido o que eu quero comprar ou não. Se eu quiser comprar alguma coisa, claro. Mas será essa a melhor maneira de consumir a música? Ou melhor, de possuí-la? Ou ainda: será que eu (ou você), num futuro que já está entre nós, onde é possível ter acesso, virtualmente, a todas as músicas do mundo, vamos precisar “possuir” música?
Como disse, não paro de pensar nisso. E mesmo ao escutar o disco do WU LYF pela terceira ou quarta vez, não penso em outra coisa. “Go tell fire to the mountain” é mesmo genial – bem acima das minhas expectativas (a última vez que ouvi uma voz que vinha tão das entranhas assim, como eles mostram em “Cave song”, por exemplo, ela tinha um dono chamado Kurt Cobain). As faixas transitam numa zona até hoje para mim desconhecida, entre o fantasmagórico e o pop. São divinas e assustadoras; familiares e enigmáticas; sedutoras e repelentes. Gostei tanto que, com uma humildade que só Montaigne talvez possa acatar, vou negar a própria afirmação que fiz aqui(a de que o melhor disco do ano, até agora, é “The english riviera”, do Metronomy) para afirmar que bom mesmo é esse trabalho de estréia do WU LYF. Mas será que eu sentiria o mesmo prazer de ouvir esse disco se meu primeiro contato com a banda fosse exclusivamente pelo meu computador?
Tenho certeza de que não – de que essa experiência é mesmo diferente. Uma certeza tão forte quanto a de que vem aí uma geração inteira que não está nem aí para isso. Em breve, haverá uma legião de adoradores de música que não conseguirá nem imaginar que um dia já foi possível “tocá-la”. As mesmas pessoas que, um dia, tenho certeza, olhará para a ilustração que coloquei lá em cima, que está na capa interna de um outro CD muito bom que comprei (sim, comprei!) recentemente – “Let the dog drive home”, de uma banda chamada Teitur – e não terá idéia do que se trata a inscrição que está na lápide (aliás, mal saberá o que é lápide…).
E a culpa é sua, Jon Pareles!!
O refrão nosso de cada dia
“Cool cat”, Queen – sim, o Queen, esse mesmo que você está pensando. A banda que deu ao mundo “Bohemian rhapsody”, “Under pressure”, “We are the champions” – e principalmente “Love of my life”. Em 1982, uma das bandas mais veneradas do planeta (se já é até hoje, imagine naquela época) lançou um disco muito à frente do seu tempo, “Hot space”. Eu me apaixonei pelo álbum instantaneamente, mas todas as críticas que lia pareciam querer me convencer de que eu estava errado, de que o disco era um “grande erro”, uma deslizada “feia” de uma banda que havia perdido o rumo – tentando sair do patamar do rock clássico para o duvidoso universo do eletrônico, então moderno. “Under pressure”, na verdade, era uma faixa de “Hot space”, mas a maioria dos fãs do Queen prefere esquecer o resto do álbum e ficar só com esse sucesso. Quero fazer diferente: lembrar de outra canção desse trabalho, que, para mim, é uma obra-prima negligenciada – “Cool cat”. Cantando num falsete malandríssimo, Freddie Mercury oferece uma de suas músicas mais sensuais. Por que eu lembrar dela agora? Porque eu a ouvi outro dia no meu iPod – e tive a certeza de que só os fãs mais dedicados se lembram dela (e talvez, não com carinho). Vamos tentar reparar essa injustiça.
Por Zeca Camargo
Posted by Paulo Studio 2002
@ terça-feira, 12 de julho de 2011
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